sexta-feira, 15 de março de 2019

Diário de bordo 15/03/2019 – A 43 km da orla de Paracuru – Ceará






SOBRE HIERARQUIA



Na sexta-feira passada, embarcaram o outro comandante e chefe de máquinas. Eles não gostam da nossa turma. No embarque passado, o chefe deu falta de um roteador. Disse no refeitório que na nossa turma só tinha ladrão. No dia seguinte, descobriu que o roteador estava com o comandante. Nós ficamos sem ter roubado; ele ficou sem pedir desculpas. É a hierarquia.

Antes de eu vir pra cá, o mesmo chefe de máquinas foi ao mesmo comandante se queixar da imediata da nossa turma. Até hoje eu não sei o que ele foi falar (talvez devesse ter perguntado ao chefe da minha turma). Mas ele deu um grande azar. Era o primeiro embarque do tal comandante por aqui. E ele -  não sei se para mostrar serviço, se para saber quem é quem – teria dito: “olha, chefe. Eu não quero disse me disse não. O senhor está dizendo que ela fez isso. Então, calma aí. – Imediata, vem aqui no meu camarote! – Olha, o chefe tá aqui dizendo que você fez isso, isso e isso. Não disse, chefe? Então, foi isso ou não foi?” – E não tinha sido. Imaginem a cara de bunda que esse cara ficou. Mas teve que engolir o sapo que ele mesmo havia criado. Deu o sapo na mão do comandante achando que ia assistir a imediata engolir... mas o comandante “não senhor, engole que o sapo é teu!”. É a hierarquia.

Hierarquia é o nome do mecanismo criado para que tudo o que aconteça dentro de determinada sociedade, convirja de tal maneira que quem está no topo da pirâmide esteja sempre certo. A hierarquia atua sempre de maneira inversamente proporcional. Se o topo da pirâmide comete um erro, por maior que seja; uma desculpa esfarrapada serve para justificar o deslize. Se a base age completamente de acordo com a regra, mas isso vai de encontro ao desejo de quem está na parte de cima, qualquer desculpa esfarrapada serve para transformar essa conduta em erro abominável. A hierarquia existe para ampliar a desigualdade, para falar mais alto do que a ética, para que a verdade de muitos juntos valha bem menos que a opinião de um único. A hierarquia é, portanto, a condição de que o indivíduo aceite uma enorme assimetria para integrar-se a determinada sociedade.

Como o homem é animal político e simultaneamente participa  de diversas sociedades – família, trabalho, cidade, país – é natural que seu papel varie dentro de cada uma delas. Dentro da família, pode ser filho, mãe, chefe da família; no trabalho, estagiário, analista, presidente, diretor; e por aí vai. O motivo de o indivíduo aceitar papel subalterno em sociedade mais circunscrita - e por isso mesmo, de hierarquia mais rígida – está diretamente ligado ao potencial de ascensão em outras sociedades mais abrangentes das quais ele participa. Esse potencial de ascensão está basicamente ligado à notoriedade que seu papel na sociedade circunscrita tem sobre as sociedades abrangentes, e pelo poder econômico por ela proporcionado; sendo independentes esses dois fatores. Exemplo? O assessor de porra nenhuma que leva cafezinho ao presidente da República tem mais reconhecimento social que o presidente da cooperativa de catadores de latinha.

Repare que: dentro da lógica da hierarquia, a quantidade de trabalho realizada, bem como sua importância dentro da sociedade abrangente; estão longe de entrar na conta. O lugar que o indivíduo ocupa dentro de uma hierarquia circunscrita é sua moeda de troca – melhor!, é seu próprio valor intrínseco -  nas sociedades abrangentes. Eis o motivo de o indivíduo aceitar a hierarquia circunscrita, ainda que na última posição da base. Muitas vezes o simples fato de pertencer a determinada sociedade circunscrita já coloca o indivíduo em posição privilegiada quando na sociedade abrangente. Exemplo – “aquele cara trabalha todo dia com o presidente da República. Dê a ele a melhor mesa do restaurante.”

Em uma frase; é por conta da hierarquia que as pessoas vão ser faxineiros na Europa (e voltam dizendo que eram “cleaner”). É por conta da hierarquia que Tieta foi tão bem recebida quando voltou a Santana do Agreste (se dizendo esposa de rico). É por conta da hierarquia que padre João benzeu o motor do major Antônio Moraes, mas relutou quanto a benzer a cachorra do padeiro (dizendo que motor era coisa que qualquer um benzia). E é por isso, meus caros, que eu lavo, limpo e cozinho em navio (mas às vezes também digo que taifeiro é um cara que manda pacaralho aqui na Petrobras).



PORTAS CORTA FOGO



A acomodação do navio tem uma escadaria central. Nessa escadaria, há portas corta fogo que dão para os respectivos andares (conveses)  e seus aposentos. Acontece que o roteador central fica no piso dos  oficiais, o quarto piso. Com essas portas todas fechadas, o sinal da internet praticamente não chega para os canelas – primeiro, segundo e terceiro pisos. Quer dizer, o navio tem internet, mas só quem pode usar sem ter macete é o topo da pirâmide. O resto que se vire. É a hierarquia. Mas o resto se virou. Colocaram presilhas nas portas para mantê-las abertas o dia inteiro. Aí o sinal chegava para todo mundo. Quando o novo chefe e o novo comandante embarcaram, fecharam tudo de novo. “Ah, porque essas portas têm que ficar fechadas, isso é norma de segurança, bibibi, bibibi.”. Sim, claro que é norma de segurança. Mas que seria facilmente esquecida se o roteador central ficasse no primeiro piso. Aí, eles mandariam colocar presilha nas portas para terem internet numa boa. Também é norma de segurança não entrar de macacão no refeitório. E vocês acham que eu vou impedir o chefe de entrar pra tomar café a cada quinze minutos? Eu não sou retardado. É a hierarquia.

E os tripulantes começaram a se queixar: “porra, esse peste toda hora fechando as portas. Tava tão bom pra todo mundo, agora vai ser essa merda.” . “Isso aí é porque ele não gosta de nós, macho. Não chamou nós de ladrão?”. “Tem nada, não. Ele fecha, nós abre.”. E eu disse “é lógico, porra, o cara é um só; nós somos vinte! Vamos ver quem cansa primeiro. Se ele de fechar, ou se a gente de abrir. É só não dar mole de ele ver a gente abrindo. Espera ele fechar, dá cinco minutos, vai lá e abre. Melhor só ele puto eu nós vinte.” E começava a guerra das portas. Todos sabiam quem fechava. Ninguém sabia quem abria.



APESAR DA HIERARQUIA, A ESFERA DE AÇÃO



Ninguém está mais abaixo no organograma do que eu. Acordo antes de todos, paro de trabalhar depois de todos. As outras seções trabalham oito horas por dia. Param no sábado ao meio diz e só retornam na segunda, às sete da manhã. Trabalham oito horas, mas podem declarar dez. Eu trabalho mais do que doze horas, mas sou proibido de declarar mais do que dez na planilha de horas trabalhadas.  A lógica diz que meu trabalho é extremamente importante. A hierarquia, não.

Mas, justamente pela quantidade de horas que trabalho, sei muito bem que meu trabalho interfere na vida de todos por aqui. E decidi usar isso a meu favor. O chefe é viciado em café. Não passa meia hora sem vir à copa buscar. Os sábios tem consciência de que não se deve tratar mal quem traz a sua comida , e que , em um navio, não se deve deixar a cozinha insatisfeita; ou todos sofrem. É obrigação minha que haja sempre café pronto. E eu faço café entre quatro e cinco vezes ao dia. Antes do café da manhã, depois do café da manhã, antes do almoço, antes do jantar, e depois do jantar. Então, sempre há café fresco.

Em uma situação de descontentamento, apesar da hierarquia, há a esfera de ação. Passei a fazer quatro litros de café antes do café da manhã e deixar o mesmo café na máquina até o outro dia. O cozinheiro, sem querer deixou a comida um pouco salgada demais. Ninguém deixou de cumprir com sua obrigação, satisfazendo à hierarquia. O diferencial é como passamos a fazer. E tome de porta abrir, e tome de porta fechar. No dia seguinte, a porta não se fechou.



UM NÃO TIRA TODOS, MAS TODOS TIRAM UM



No dia seguinte, sábado, o chefe estava completamente arreado. Já tossia desde o dia do embarque, mas a poeira do ar condicionado piorou demais seu quadro. Tomou café sem emitir som, foi embora. No almoço, o comandante perguntou “alguém viu o chefe hoje? Sumiu!” E sumiu mesmo. Não almoçou nem jantou nesse dia. No almoço de segunda feira, já perto da hora de tirar a refeição, comentei com a imediata. “Pô, esse cara não vem, ou vai deixar pra vir no último minuto, só pra sacanear?”. “Arthur, o chefe desembarcou! Foi para a plataforma, o enfermeiro não deixou voltar. Desembarcou ele. Ele vai é direto pro Rio. Nem vai a médico em Fortaleza.”. “Ah, é? Também, tanta gente pensando positivo pra ele aqui, com essa coisa da porta, né? Hahahah.”. E Cabeça arrematou: “é, rapaz. Um não tira todos, mas todos tiram um.”. “Quero morrer amiga de vocês.”, disse ela.

No outro dia, quem andava tossindo e de cabeça baixa era o comandante. “Pô, o chefe foi embora, agora eu é que tô doente.”, e também ficou sumido do navio. Vinte e três pessoas a bordo. Só os persona non grata doentes. E todas as portas abertas. Foi ótimo.



A SÍNDROME DO PEQUENO PODER

OU

 SEMPRE HÁ UM PEIXE MAIOR



Hoje foi dia de troca de turma. Saiu metade da minha turma, entrou metade da outra.  Antes de desembarcarem, alguém disse: “o chefe tá voltando aí. E tomou foi um esporro lá no escritório, no Rio.”

É o seguinte: sempre que alguém desembarca por motivo de saúde, tem a obrigação de ir ao posto mais próximo da empresa. Lá há um médico da empresa,  que também é médico do trabalho. Esse cara é o responsável por avaliar o quadro do desembarcado, e dizer se embarca de novo, se precisa de cuidados maiores, se vai a hospital, ou se volta para casa. Eu que acabei de entrar na empresa sei disso. O chefe está careca de saber. Só que a sociedade hierárquica onde ele tem enorme poder é circunscrita ao navio. Essa megalomania de achar que seu martelo afunda prego em qualquer lugar é a síndrome do pequeno poder. E é muito comum por aqui. E quem sofre disso se esquece de que sempre há um peixe maior. Ainda mais fora do seu aquário.

Acontece que o chefe desembarcou e cagou para o médico do trabalho de Fortaleza. Nem se deu ao trabalho de ir. Foi a seu médico no Rio, que nem deve ser médico do trabalho, inclusive.  Aí foi ao escritório comunicar o afastamento, levar atestado, e tal. Tomou-lhe uma mijada de alguém que manda mais do que ele. Quem manda no escritório não é ele. É a hierarquia.

“Ah; deram-lhe um esporro, é? Então vai voltar manso. Vai ter internet!”. O chefe já está a bordo. Sorri, mas ainda está rouco. O comandante segue com febre.

sábado, 2 de março de 2019

Diário de Bordo, 26/02/2019 – A 43 km da Orla de Paracuru – Ceará



O CHEFE DE MÁQUINAS

 GÊNESIS

           Chegar para trabalhar em uma nova embarcação é sempre  parecido. A gente entra sempre com porte de estagiário. Solícito, gentil, mais trabalhador que o de costume. Vê o que há de errado -mas ninguém havia visto - e logo corrige. Não que as outras pessoas trabalhem com desleixo. Mas junto com os anos trabalhados no mesmo lugar, vem agarrada uma acomodação, um estado de costume que embaça a visão. Depois de um tempo é possível caminhar pelo navio de olhos fechados como alguém que encontra o que procura em seu quarto, mesmo no escuro. Para quem chegou há pouco tempo é bem mais fácil detectar os erros. É a hora mais fácil – e a mais necessária – de se mostrar serviço. Talvez eu não tenha trabalhado mais que o de costume. Talvez em todo início seja mais fácil trabalhar certo.

É sempre preciso observar as pessoas. Ainda mais quando você é o outro, o novo, o diferente. Quando você é a notícia é necessário conhecer as fontes, já que todos –menos você – têm o noticiário em posse. Você só começa a fazer parte do grupo quando deixa de ser noticiado e passa a receber as notícias. Por isso mesmo é que existem sempre no mínimo dois grupos em navios: os canelas e os oficiais. Um grupo sempre  noticiará o outro. Existem também os grupos “tripulação A e tripulação B” , podem existir “convés e máquinas” – entre os canelas e/ou “náutica e máquinas” – entre os oficiais , “efetivos e contratados” , “próprios e terceirizados”, “embarcados e povo da terra”.

Quando vem uma notícia nova, o melhor a se fazer é entender de que grupo ela está partindo, em que dialética ela está trabalhando.  Isso porque um único canal de notícia pode pertencer ao mesmo tempo a vários desses grupos. A relação entre quem fala , a partir de que grupo fala, sobre que grupo fala, - e só então – o que fala; é que garante ou não a qualidade, veracidade e importância da notícia.

Essa é a complexidade de uma sociedade pequena como a de um navio. Quem chega e entende isso, sabe que é melhor chegar calado. A sociedade pode ser harmônica – como gostaria Rousseau – ou pode viver em pé de guerra – como tinha certeza Hobbes.  Com dois ouvidos e uma só boca, ganha mais quem escuta e entende em que navio está.

Por sorte, vim para um navio de escala relativamente curta (35x35) e de tripulação extremamente amistosa. É um excelente lugar para o período de experiência. Quando problemas de relacionamento não são cotidianos, menor a chance e cair problema no colo do cara novo. Sorte a minha.

Embora haja sempre tantos grupos de notícias que formam a eterna rádio cipó (em terra, a chamada rádio corredor, ou rádio peão), às vezes você encontra um ou outro personagem que mesmo fazendo parte dos grupos, é alheio a tudo isso. Alguém que acaba integrando os grupos porque o grupo o considera integrante; ainda que, secretamente,  para ele isso não faça a menor diferença. Por aqui somos dois. Eu e o chefe de máquinas.

NO PRINCÍPIO ERA O NÃO-VERBO

A primeira impressão é a que fica. Será? Nem sempre. Se fôssemos pautar nosso tratamento por conta de nossa primeira impressão um do outro, eu não saberia nem a metade do que hoje sei a respeito desse navio e de seus tripulantes. Nem ele teria com quem desabafar sobre sua longa vida no mar.
Não chegou a ser ruim, a primeira impressão. Foi, sobretudo, estranha. Eu estava na copa trabalhando, chega ele. Quem me disse que aquele era o chefe foram seus próprios cabelos brancos; suas rugas. E seu silêncio. Entrou, pegou um pouco de café na cafeteira torre que fica ao meu lado – eu de frente para a pia; de costas para ele- , ficou indo e voltando de um lado para outro.  Cada vez que passava perto da pia, derramava um gole de café dentro dela. E continuou andando e derramando café, até que se acabasse o copo entre goles bebidos e jogados fora. Dei bom dia, ele não respondeu. Jogou o copo fora e saiu, como se ali houvesse entrado e saído em segredo. E como se ainda tivesse certeza de que sua ida à copa seria levada para o túmulo. Era como se eu fosse um gato de comércio, um quadro de consultório médico. Para ele, eu não fazia a mínima diferença no lugar. Ele saiu e eu fiquei pensando se o café que eu havia feito estava com gosto de merda. Até provei. Vai saber, né?

Seus cabelos brancos o denunciavam como chefe de máquinas. Somente o mestre de cabotagem também tem cabelos brancos. Mas é aquele coroa que sorri, fala com todo mundo. Os marinheiros dele adoram o cara. Sendo ele o mestre e, tendo o comandante, cabelos pretos; o outro velho tinha que ser o chefe. Ainda mais depois de seu silêncio que fez parecer que quem ali estava no meu lugar, era alma invisível de Seu Mário, fazendo café mesmo depois de morto.

Entretanto, apesar da velhice característica de um chefe de máquinas experiente, sua figura destoava de seu posto. Chinelo velho, bermuda furada, uma camisa branca lavada tantas vezes que, a estampa frontal tinha jeito já de marca d’água. A gola chegava quase ao ombro, de rota. Vestia-se com roupas que não se deve dar aos pobres.

Fui para a sala de fumar coçar a pulga que ele se tornara em minha orelha. A sala não cheirava a cigarro – indício de que não havia fumantes a bordo. Acendi um cigarro de espantar mosquito – o que se acende e deixa-se quieto no lugar – e quem aparece? Quando colocou o segundo pé na sala e me viu, pela primeira vez seus olhos tiveram vida em minha presença. Melhor; pela primeira vez seus olhos deram a mim, vida. Ele se sentiu desmascarado. Eu, nu. Ele virou as costas e saiu tentando esconder seu desconcerto, ainda sem que eu conhecesse sua voz. Por diversas vezes a cena da sala de fumar se repetiu. Levei numa boa. É nas refeições e durante o trabalho que se deve obrigatoriamente dividir o espaço com os outros. Os poucos prazeres disponíveis por aqui, preferimos solitários.

Chegou uma hora em que ele não tinha mais cara de pau de sair da sala. Retirava um pedaço da ponta do cigarro, acendia, ficava rodando pela sala, apagava o cigarro, saía. Um tempo depois, ele percebeu que se tornara meu quadro de consultório. Foi quando começou a se sentar no sofá, de frente para a cadeira onde eu me sentava.

A marinha tem dessa palhaçada de que o oficial não tem braços. É a falta de braços dessa galera que me dá emprego. Então eu tenho que botar mesa, trocar roupa de cama, levar cafezinho, tirar lixo dos camarotes, enfim; eu sou a mãe desses caras. E foi em uma visita ao camarote do chefe que eu descobri como fazer o velho falar.

O VERBO ESTAVA COM DEUS, E O VERBO ERA DEUS. O VERBO ESTAVA COM ELE DESDE O PRINCÍPIO

De tempos em tempos eu devo ir ao camarote dos sem-braço dar um tapa na limpeza, na arrumação. O do comandante é muito limpo, não deu problema. Imediata mulher; prefere que eu não entre, só em último caso. Amén. O chefe é um pouco mais bagunceiro, mas nada demais. Um escritório na entrada do camarote com sofá, computador, frigobar, escrivaninha. E uma porta que dá para o dormitório. No meio da porrada de remédio que velho tem que tomar, meus olhos brilharam. Livros, vários livros. O primeiro e mais importante, Confissões – Santo Agostinho. Os textos sobre filosofia que volta e meia escrevo e entitulo “solilóquios” são por causa desse cara e de sua escrita magnífica. Muita pretensão de minha parte, sem dúvida. Vamos fingir que vocês continuam sem saber. Ao lado de Agostinho, Thomas Skidmore,  o que foi uma surpresa muito maior uma vez que alguém aí sabe quem é Thomas Skidmore? Pois é. O chefe de máquinas sabe, miserável. Ken Follett. E outros. “Porra, o coroa não é de bobeira, não. Mas esse filha da puta vai falar vai ser agora. Vou acabar aqui e vou ficar esperando na sala de fumar.”

“Ô, chefe. Bom dia!”. Ao que ele respondeu fechando os olhos ao mesmo tempo que fazia que sim uma vez com a cabeça. “Chefe, o senhor me perdoe parecer intrometido. E no final das contas, o que eu vou falar não vai fazer diferença nenhuma na sua vida, mesmo. Mas porra, o senhor lê bem pra caralho, hein?” E seu cenho franzido se converteu imediatamente em cara de pai que vê, escondido, o filho dar voluntariamente um pedaço de seu lanche a alguém que esteja com fome. “Agora você vai falar, né, desgraçado?”- pensei.

E assim foi. “Ah, eu leio tudo. Todos os livros que tem aqui a bordo eu já li. Os bons e os ruins. O pessoal aqui usa livro como apoio pro celular. Já viu nas janelas aí? Empilham quatro, cinco livros e põem o celular em cima, pra pegar melhor o sinal. E pronto. Tem que ler mesmo, rapaz. Te leva pra longe disso tudo aqui. Aí o embarque passa rapidinho, que você quando vai ver, já leu três, acabou o embarque.”. “Eu vi lá, quando fui limpar o camarote. As Confissões de Santo Agostinho é sensacional, né? Os primeiros capítulos são um absurdo, a escrita do cara. Depois ele vai contando que era mó maluco, vivia enchendo a cara, na sacanagem. E aí depois virou santo. Tem jeito pra nós, né? Ahahahah.”. “Esse livro tá lá? Tem tempo que li. Mas é muito bom mesmo.”. “Ken Follett, maneiro também. Escreve muito sobre” – “espionagem” - “exatamente. Mas o que eu achei mais legal dele é o Pilares da Terra.”. “Ah, esse eu tenho em casa, bom pra cacete mesmo.” “Eu tenho aí no HD a série de tv, se quiser passo pro senhor.” Ele fez cara de “como assim? “ – “É, pô. Fizeram uma série de oito episódios. Excelente.” “Ah, eu quero sim. A gente estava pensando no que ia assistir agora; então vai ser o pilares da terra. Todo dia , sete horas da noite a gente assiste filme lá no auditório. Vem também! Passa o filme pro mecânico, que a gente liga o projetor no computador dele.”
            
            Eu não fui. Passei o filme pro mecânico, mas não fui. Já assisti pilares da terra duas ou três vezes; chega. Mas a questão é que Santo Agostinho tinha feito o chefe falar. Fez até ele me convidar pra ir assistir filme. Quando terminaram a série, comentei que eu também tinha “Mundo Sem Fim”, também do Ken Follet, 200 anos depois da história de Pilares da Terra. Emendaram. Aí, todo mundo queria ver meu Hd, pra pegar o que mais havia nele. Nessa, também peguei o que cada um tinha. Ser bem visto pelos oficiais da administração faz com que sua esfera de ação possa aumentar significativamente em um navio. Pode-se ser político com cada tripulante e ganhar sua afeição. Pode-se ganhar a afeição da administração e de quebra receber o respeito de todos. Pra mim só serve se houver os dois. Graças a Santo Agostinho e a Deus, fez-se o verbo.
               
O CHEFE PELOS OUTROS

Você que está lendo e é terráqueo, sabe que seu trabalho é uma roça. Todo mundo fala de quem não está no momento. E olha que ninguém mora junto. Realiza essa ideia. Morar com seus colegas de trabalho. Passe uns cinco minutos pensando sobre morar com todos eles. Da tia da limpeza ao gerente geral, o diretor, o diabo. É assim. Só que aqui, você ainda tem informação deles através de outros que com eles já moraram em outros navios, ou que aqui já estiveram e já se foram. Aqui, todo mundo tem passado.

“Rapaz, esse chefe aí é foda. Tu vê que ele anda igual a um mendigo, né? Pois esse puto tem é dinheiro. Ele era da Petrobrás. Aí aposentou por lá. Criaram a FRONAPE, ele foi. Ciaram a Transpetro, ele veio. Ele ganha pela Petrobrás, pelo INSS, pela Transpetro, e ainda tem a Petros, a nossa previdência privada. É dinheiro pra desgraçar.”

“Oxe, ele é acionista, rapaz, da petobráis. Ganha uma ruma de dinheiro aí de ação, sabe de tudo antes de todo mundo.”

“Lá na sede tem bem assim uma sala que na parede tem uns quadros, num sabe; com as fotos dos oficiais que embarcaram por mais tempo na empresa. Ele é o segundo que embarcou por mais tempo. Faz bem uns quarenta anos, ó macho! Caba tem uma moral da porra na empresa.”

É claro que os principais depoimentos sobre o chefe eram sobre dinheiro.  Em uma função na qual a média salarial já é nos arredores dos vinte mil reais, o assunto sobre uma pessoa que tem essa, e pelo menos mais três rendas vai mesmo girar em torno disso. Fora que esses caras têm imóveis alugados, né? Outras ações, às vezes empresas... “Arthur, o rio só corre pro mar”, me disse certa vez um chefe de máquinas que trabalhou comigo em outra empresa, quando falava-se também em dinheiro. Mas eu me interessava sempre mais pelo velhote, porque os comentários sempre vinham acompanhados de grandes elogios a sua pessoa, seu proceder. E nossas conversas sobre literatura sempre confirmavam os comentários sobre ele. É mesmo um cara de virtude.

ANIVERSÁRIO DO CHEFE

No meu primeiro embarque por aqui, o chefe fez aniversário. Sempre tem “aniversariantes do mês”, aí é uma festa pra todo mundo junto, que nem eu nem os cozinheiros tacamos pedra na cruz. Mas dessa vez, foi no dia mesmo do aniversário dele.  Aí aquela coisa, presente, parabéns, bolo e guaraná, muito doce pra você. Aí, como era o dia dele, pediram discurso.

 “Queria agradecer a todos que estão aqui comigo hoje, ao universo por me proporcionar o prazer de poder ainda estar trabalhando, piriri, pororó.”. Respirou fundo, seus olhos ganharam o horizonte. Agora ele não mais discursava: estava orando em público - “eu estou hoje completando sessenta e cinco anos. Cheguei ao final da expectativa de vida (seus olhos miraram o chão, ele deu de ombros com palmas paralelas ao teto, dizendo com o corpo: “fazer o quê? “) , mas se eu puder fazer um pedido; peço mais cinco anos de vida, se o universo me permitir.”. Sua voz sofreu a interferência que causam sessenta e cinco anos passando de uma vez pela garganta, e tremulou. Uma pequena amostra de toda água salgada que já havia rodeado a vida desse homem brotou em seus olhos, confirmando que o mar estaria com ele até o fim. Ao estilo dos senhores gentis, botou a mão direita sobre o peito, levantou a esquerda em aceno, balançou a cabeça que sim enquanto bruxuleava um sorriso que era resultado da luta entre a satisfação do vivido versus a reflexão sobre o fim iminente da vida. Todos aplaudimos.

Naquele instante eu me tomei de admiração por ele. Alguém em sua idade, com seus recursos e as opções por eles possibilitadas, ainda trabalhando. Talvez, por isso mesmo sua gentileza. Você tem certeza que alguém faz o que quer da vida, quando o faz sem nenhuma necessidade, mesmo depois de aposentado. Assim vivem os artistas. “O mundo não será feliz a não ser quando todos os homens tiverem alma de artista, isto é, quando todos tirarem prazer do seu trabalho.” – Já disse Auguste Rodin.

Quando o chefe fez seu discurso, eu não vi ali um Oficial Superior de Máquinas de enorme currículo. Não vi alguém que havia viajado o mundo navegando a trabalho. Não vi alguém que sucessivos diretores da empresa conhecem pelo nome. Ali eu vi apenas um homem feliz com a vida que levou. Esse é um homem que entendeu a vida. Eis a importância da leitura na vida de um ser humano. A chance de a vida ser em vão é maior demais aos que não leem. Mas é preciso ler para disso ter consciência.

OS OUTROS PELO CHEFE

Com o tempo, as conversas foram diversificando. E sem que eu perguntasse, ele começou a falar das pessoas de bordo. Eu havia dito anteriormente que dedicaria um texto ao chefe, uma vez que ele é o personagem mais importante daqui. E ele é o mais importante, pois foi ele quem me possibilitou ter escrito sobre os outros. Ele é a principal fonte de construção dos outros personagens. Ainda bem que ele nem desconfia disso.

“Aqui, rapaz, esse poço aqui é uma merda. Já tentaram vender isso pra todo mundo, ninguém quer comprar. Já deu o que tinha que dar. Aqui faz o quê? Cinco mil barris/dia. Não é porra nenhuma. As plataformas, você vê que têm pessoal reduzido, uma está praticamente desativada. Esse campo aqui tem é função social. A empresa tem gente pra trabalhar, então continua por aqui.”. “Mas porra, chefe, então não dá lucro?”. “Dá, porra. Lucro dá. Mas é pouca coisa em relação ao pré-sal. O interesse da empresa é o pré-sal, ué. Petróleo pra caralho... mas pra eles é bom aqui. Aqui eles botam todo mundo que eles não querem em outros lugares.”. “Ih, como que é isso?”. “Todo mundo que tá aq.. todo mundo não, uma porrada de gente. Já fez merda, ou é maluco. Saporra é um hospício, rapaz. Junta todo mundo aqui que toma tarja preta que você vai ver, hahaha.”

Você nunca sabe onde está, até que alguém mais antigo te mostre. Por isso, o que não é dito é sempre mais importante até do que o que é visto. Daí a importância desse velho. Ele veio me contar de graça o que os outros personagens acham desnecessário que eu saiba. É ótimo fazer amizade com alguém que já vai morrer mesmo, então está cagando para o que os outros acham. “Aqui tá todo mundo de favor. O fato de esse navio aqui ficar amarrado e não navegar, salva a vida de muita gente! Aquela menina da máquina. Você vê que ela não bate bem, porra. Ela não pode navegar, que dá merda. Tarja preta. A imediata, tem os problemas dela, tá aqui de favor. As duas imediatas estão. A da outra turma saiu daqui chutada. Depois de um tempo, não tinham onde enfiar aquela porra; voltou pra cá. Mas voltou mansinha, bola baixa. Os dois comandantes aqui são novos; chegaram esse ano de 2018. O da outra turma é aquele negócio de síndrome do pânico. Se tranca lá no camarote e fica gritando “eu não queria estar aqui, porra!”, a gente ouve tudo. Tarja preta. “. “Puta merda, só tem piroca! Aí, chefe. No natal, o comandante disse que o início do ano foi ruim pra ele, aí mandaram ele pra cá, estava se reerguendo, e tal. Qual é a dele?”

“Puta, coitado. Esse estava no longo curso. Quando chegou na costa leste da África , inventou de tocar um exercício de incêndio e abandono. Só que, duas coisas. Em navegação de longo curso, não é obrigado ter exercício. E ainda mais na África, porra. Um mar filho da puta de ruim, e aquela porrada de pirata, né? Mas ele resolveu fazer assim mesmo. Se fodeu. Veio uma onda, mas uma onda daquela que atravessa o convés todo e a crista nem bate no chão. Passa toda por cima do navio. Poooorra, mas foi gente voando pelo convés, teve nego que ficou agarrado assim nos ferros com as pernas pra fora do navio, cara. Foi foda. Não morreu ninguém, mas podia ter morrido gente pacaralho, né? Aí até agora ele tá respondendo aí uma porrada de processo. Passa dias sem dormir. Tarja preta. Você vê que ele é gente boa, mas fez merda, né?”

Eu vi que nunca mais olharia pra nenhum deles da mesma maneira. “E você, chefe? Tu é maluco? Ou fez merda?”. Ele olhou, sorriu e disse: “não, porra. Eu sou é velho, né? Eu estou aqui porque eu quero. Se me tirarem daqui eu vou-me embora pra casa. Já chega de navegar pra longe. Quero trabalhar, mas com tranquilidade.”. Eu olhei de soslaio, sorrindo e sacaneando: “uhum. Tá bom, então. Tu é o único santo aqui da história.”

VELHO

É velho e ainda é velhaco. Mas no bom sentido da velhacaria. Ele entende que as diversas pressões que aqui atuam, mais especificamente as psicológicas, precisam de uma válvula de escape. E ele acha um barato ser esse agente de descompressão. “Eu gosto de contar piada de velho na mesa. Mas aí eu falo que o velho da piada sou sempre eu. O pessoal adora, ahahahah. Eu mesmo me sacaneio, que aí eles ficam felizes, eu não ligo, não. Você conhece a história de Sansão?” . “Ué, o da bíblia? Sim, pô.”. “E do magnífico Sansão? Hááá”. “Hahahaha, esse não, conta aí.”. “Numa cidadezinha que o cara estava visitando tinha lá uma casa de show, com o letreiro em cima: HOJE, SHOW DO MAGNÍFICO SANSÃO. Aí ele foi ver. Chegou lá, entrou um cara no palco. Aí botaram lá três mulheres. Ele cacetou a primeira, pá; (quando dizia pá, estalava o dedo indicador no médio, como se faz com o termômetro), a segunda, pá; a terceira, pá! Nego “’óóóóó”. Aí, botaram lá uma mesa. Na mesa, botaram três nozes, uma do lado da outra (aqui eu já dei uma gargalhada). O Sansão veio com a chibata e pá (agora fazia como se estivesse usando um machado, uma marreta), pá ,pá! Nego “óóóóóó”. Aí, quando foi trinta anos depois, o mesmo cara voltou na mesma cidade, e viu lá o mesmo letreiro: MAGNÍFICO SANSÃO: 19:00HS, 20:00HS, 21:00HS, 22HS (poooorra). O cara disse “porra, não é possível, deve ser o filho do cara.” , e entrou. Entrou no palco um velhinho, era o mesmo cara! Aí botaram CINCO mulheres, ele pá! Depois vieram com três CÔCOS! Pá, pá, pá, ainda dava o côco de presente para a plateia. Quando acabou, o cara foi lá falar com ele... “Magnífico Sansão, como que pode, cara. Tem trinta anos que eu vim aqui, como a velhice não te afeta, porra?” – “Não afeta é o caralho, tem cinco anos que eu deixei de enxergar as nozes!”. Velho contando piada de velho é engraçado demais...

DEIXA EU BROXA, MESMO

O café da manhã é sempre a refeição mais divertida do dia. Já era assim em outras empresas, em outros navios. Continua sendo também por aqui. O horário de serviço do café é às 06:30 e finaliza às 08:30. Esse é o horário oficial. Mas eu prefiro acordas antes das cinco. Assim, sirvo o café antes das seis da manhã, fazendo tudo sem correria. Três ou quatro tipos de fruta, cinco variedades de pães de forma, quatro tipos de frios, quatro tipos de queijo, requeijão, iogurtes, café preto, leite quente, bolo, um batido de leite gelado: seja vitamina de abacate (abacatada, por aqui), banana com aveia e mel, frappuccino, kiwi ao leite, ou mesmo um nescau gelado. Para quem quiser, estão disponíveis também granola, aveia, mel, ovomaltine, leite em pó. Os cozinheiros preparam aqui um prato quente. Cachorro quente, ovo mexido, canjica, várias coisas. Quando cheguei aqui achei pouco. Na última empresa que trabalhei, eu fazia o café da manhã todo sozinho. E fazia três opções de pratos quentes, fora todo o resto. Eu não falo nada porque é bem capaz que sobre pra mim.

É comum que antes das seis eu já esteja me servindo para comer; não sem antes sair do refeitório, ir à sala de TV, ao lado e dizer: “bora!”. Ali normalmente já estão aguardando Bira e Moisés, os marinheiros de convés. Dois coroas. Moisés é de Fortaleza;  enorme, parece um armário. Expressão sempre séria, voz de trovão, olhar retilíneo, pele marrom avermelhada.  Não vale porra nenhuma; é um sonso. Só se faz de sério, mas é uma grande criança. Cabeça grisalha raspada a máquina 4, talvez. Fica com o cabelo espetado, como os japoneses de cabeça raspada. Era da marinha de guerra, serviu no Rio. Seus caninos inferiores são projetados à frente dos demais, e aquilo me dizia que ele parecia com algum personagem de desenho animado. Depois de uns dias, percebo. Pumbaa, o javali. Bira é de Natal; pescador daqueles brabos, que cambou para a marinha mercante, e hoje tem uma vida sossegada. Mais de cinquenta anos, mas forma física melhor que a minha. No meu primeiro embarque aqui o moço de convés que era contratado falou pro Bira que eu era viado e gostava dele, ahahahaha. Eu batia o abacate com leite, botava na mesa e dizia que quem quisesse beber  tinha que pedir ao Bira, porque era dele. Quem pedisse alguma coisa que não estivesse à mesa, deveria pedir ao Bira. Aí eu buscava. O coroa ficava vermelho, que quase explodia. Até ele acreditar que eu não era viado, levou tempo.

A gente se senta , se serve. Começa a sacanagem. “Cabeeeeça, meu amigão, cadê você?” . “Tô aqui, meu amigão! Bom dia!” . “Ó, Cabeça; o Moisés tá aqui dizendo que você só faz bolo pro mestre, que se der um chute no saco do mestre, quebra três dentes teu!” . “Eu não acredito em vocês, não. Vocês querem estragar minha amizade com Moisés, mas não vão conseguir, né, Tio Môse?” . “Tá vendo aí, né, Cabeça... esses cara não podem ver ninguém tratando o outro bem.” Cabeça volta para a cozinha, e Moisés diz pra nós: “essa peste desse bolo véio ruim da porra, rapaz...” e ri. “Aqui Cabeça! Falando mal do seu bolo!”. “Bira, já disse que eu não acredito em você!” ; e todos rimos.

Esses dias, o papo que rolou no café da manhã foi viagra. Todo mundo sabe tudo de viagra. Você só não encontra quem já tenha tomado... né? “Os velhos lá da Roca, em Natal... morreu bem uns quatro já. Por causa de viagra! Toma toda hora, com cerveja ainda. Com cachaça, com o que for. Tá tudo morrendo lá.”

Entra o chefe de máquinas, se serve, senta e ouve quieto. “Rapaz, teve um lá no Mucuripe que tomou mais de um; com cerveja também. Ficou com o lado direito do corpo todo duro; menos a chibata. Ó!”. E eu comentei: “mas porra, viagra não pode tomar bebendo, pô. Tem uns outros aí que a galera fala que pode beber, que é tranquilo. Qual o nome , mesmo?” Todos , ao mesmo tempo: “NÃO SEI, não sei.”.  “A gente não toma isso, não. Vê o mestre: quase setenta anos. Treze filhos. A mulher grávida de quatro meses.”. “Tá de sacanagem que o mestre tem TREZE filhos e tá vindo outro!? Puta que pariu, esse é tarado mesmo; vá comer feijão com farinha por cinquenta anos todo dia na casa do caralho, malandro.”. Assim são os cafés da manhã. Antes do horário oficial chegar, já começamos o dia brincando entre amigos, sem supervisão de oficiais. É uma das horas de maior liberdade no embarque.

Cigarro depois do café, entra o chefe. “Esse negócio de viagra é perigoso, mesmo.”. “Ué, chefe, toma do outro, pô.”. “Não, eu não tomo isso não. Tô falando por esses caras que bebem pra caralho e tomam isso. Eu falo pra todo mundo aqui que eu sou broxa, mas não sou porra nenhuma, não. Tinha um comandante aí que faltava cair da cadeira de tanto rir, quando eu dizia que era broxa. Aí eu falava “vai, sua vez vai chegar!”, e ele se cagava de rir. Mas porra, não fala pra ninguém que é mentira minha não. Pra todos os efeitos eu sou broxa. Gosto de fazer eles rirem. Eles ficam menos tensos. Tem que ter alguém pra alegrar essa cambada de doido...” . “Hahahahha... chefe, tu é o melhor que tem aqui! E esses caras nem imaginam o quanto que tu é pilantra. Ainda por cima faz cara de velho, aí passa batidão. Tu é velho, mas aqui conversando comigo tu não faz a cara de velho que faz pra eles, lá fora. É, vai pensando que eu sou trouxa.. ahahahha.” . Ele simplesmente sorriu com os olhos apertados, cheios de juventude.

Em cima de navio, você conhece umas pessoas que te marcam das mais variadas maneiras. O chefe Alvarenga vai ficar como um dos caras mais simples que passaram por minha empreitada marítima. Um homem que teve um momento sagrado em seu aniversário, despindo-se de todas as posses e posição, tendo uma atitude linda perante a vida. Dificilmente esquecerei o chefe e seu aniversário de sessenta e cinco anos. Parabéns, chefia. E salve Santo Agostinho.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Diário de Bordo, 07/01/2019 – A 43 km ao Norte de Paracuru – Ceará




SOLILÓQUIO

Existem perguntas de extrema complexidade filosófica , e a humanidade vem fazendo essas mesmas perguntas através dos tempos. De onde viemos? Por que estamos aqui? Se vamos para algum lugar, para onde vamos? Por que para lá, e não para alhures? Talvez, uma possível chave para abrir as portas dessas respostas seja uma outra pergunta: o que somos nós? Ora, só se sabe o que é algo em oposição a outra coisa; um não-algo. O que somos nós, para os outros? Somos o que pensamos que somos, ou somos o que todos os que são outros pensam que somos? E com todas essas dúvidas, viemos sendo. E sem nenhuma dessas respostas continuamos sendo, ainda que sem saber o que somos. A ignorância do que se é, é uma condição para sê-lo? Sabemos que até então tem sido. O que poderemos ser quando descobrirmos o que somos?
Buscamos entender o mundo com base na nossa consciência. Por termos consciência, criamos a cultura e nos diferenciamos de todos os outros seres de nosso planeta. Começamos devagar a entender o que não somos, pois agora sabíamos que tudo o que não tem consciência não é o que somos nós. Apesar de nos sabermos finitos, mortais; a cultura – essa nossa consciência coletiva – sobrevive através do tempo, provando que somos mesmo diferentes de tudo mais. Com a imortalidade da cultura, surge uma humanidade. Uma fagulha de cada homem invisível já enterrado que dá sentido à vida dos que estão inscritos no agora. A humanidade existe unicamente porque os mortos dão sentido à vida dos vivos. Os outros animais apenas vivem. Nós vivemos sempre em relação a tudo aquilo o que já foi vivido. Eis a humanidade.
Nesse caso, a humanidade é maior que o presente. Existe nesse momento; porém sempre em relação ao conhecido, ao passado. De alguns séculos para cá, passamos a viver em relação ao futuro. Estamos todos invariavelmente inscritos no tempo. Celebramos o passado nos presentes e fazemos planos para o futuro, por termos a consciência de que; apesar de nossa finitude, o tempo é eterno.
O tempo se sabe eterno? Ou a eternidade do tempo é muito mais uma característica que a certeza de nosso fim atribui a algo maior que nossa finita e curta consciência? Somos apenas um intervalo, mas queremos caracterizar o todo. O tempo precisa do homem para ser eterno? Se tão maior que toda a humanidade em todos os seus presentes, será que não é o tempo uma superconsciência? Se sim, terá o tempo consciência de nós? Eu duvido muito. Qual de nós tem consciência do funcionamento do próprio corpo? Qual de nós controla conscientemente a própria hematose, as funções de organelas celulares, o fluxo de sangue no próprio corpo? São todos elementos inscritos em nós mesmos, e só há tão pouco tempo passamos a saber que existem. Se o tempo é uma superconsciência também em busca de si, há uma grande chance de ser indiferente a nós. E de fato, é o que tem acontecido.
Quem quiser ouvir o barulho do mar, que o procure dentro da concha. Quem quiser saber sobre o tempo, que o procure no ser humano. Às vezes é procurando no outro que encontramos em nós. A teoria da relatividade - maior descoberta da ciência moderna –mostra que é o ponto de vista quem faz a diferença no caminho para a resposta.
O que vê um rio quando desce pelas pedras? O que sente o vento quando por ele passa um pássaro? Como se perdeu na concha, o barulho do mar?
As águas do rio seguem seu eterno caminho, sem o qual não seriam elas um rio. O caminho é eterno na vida do rio.
O voo é parte integrante dos pássaros, mas só existe em relação ao vento. O vento é eterno no voo dos pássaros.
No espiral em que se perdeu, o barulho do mar tenta eternamente voltar para casa. Caminha incessante dentro da concha. É dentro da concha que o barulho do mar é eterno.
Nós, em nossa finitude, nos utilizamos do tempo; ou o tempo se utiliza de todos nós pra assim ser eterno?


segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Diário de Bordo, 22/12/2018 – Na verdade, a 43 km ao Norte de Paracuru – Ceará




A folga que se seguiu ao embarque foi estranha. Apesar de não me preocupar quanto a ter ou não um emprego – já que estava em período de experiência, mas havia sido muito bem avaliado – eu não tinha a mínima ideia de para qual navio eu iria. E eu detesto ficar sem resposta. O certo era que, para o Lorena não seria; mas isso é apenas metade da informação. As pessoas me perguntavam se eu passaria o Natal e ano novo em casa, eu não sabia dizer. Para cada dia trabalhado, temos um dia em casa. Sendo assim, eu deveria embarcar ao final de 35 dias. É e não é, mais ou menos. O único navio com escala 35 é o tal para o qual eu não voltaria. Nesse caso, ao final dos 35 dias deveria haver um navio com um taifeiro a menos, ou com um contratado por tempo determinado e perto do vencimento do contrato, ou com um efetivo com tempo de embarque vencido (maior que a escala determinada do navio – e havia gente em vários navios com 120 dias a bordo), e esse navio deveria estar em um porto, ou próximo de um. Aí então eu poderia embarcar. Não era simples saber nem se e nem quando eu embarcaria. Muito menos onde.

O embarque no Lorena é nos dias de sexta-feira. Nesse caso, quem não é de Fortaleza sai de casa na quinta, vai para um hotel na cidade e espera o transporte vir buscar antes das quatro da manhã da sexta-feira para que sigamos até Paracuru. Eu precisava saber que rumo deveria tomar. Por isso, na segunda-feira que antecede a última sexta dos trinta e cinco dias, liguei para a embarcadora para saber se já havia alguma informação atualizada. “Logística, Cláudia, bom dia?” ; “Oi, Cláudia. Aqui é o Arthur taifeiro. Sou novo na empresa, embarquei no Lorena da última vez. Estive aí para buscar o macacão, conheci vocês, e tal.” ; “Ah, oi, Arthur! Eu lembro de você!” ; “(sorriso na voz) Tudo bem?  E ai? “ ; “Tudo bem, sim! Pode falar, Arthur.” ; “Então, Cláudia. Pouco tempo depois que embarquei por lá, me disseram que eu não voltaria. Antes mesmo que eu tivesse ido pra lá, o comandante havia pedido um Aluísio pra ia pro lugar do Seu Mário, mas ele só poderia ir por agora. Parece que estava embarcado na época. Aí me mandaram pra safar lá. Mas o caso é que a vaga mesmo é do Aluísio.” ; “Ah é?” ; “Pois é. Aí eu tô desde esse dia sem saber pra onde eu vou. Como hoje começa minha última semana de folga, tô te ligando pra saber se vocês já sabem pra onde eu vou.  E se não souberem, que já tenham essa semana aí desde o início para me avisarem, que eu preciso me programar, né?” ; “Não, tudo bem. Me dá teu nome completo e tua matrícula.” ; “Matrícula é tal.” ; “Olha, Arthur. Não tem nada aqui no teu nome não. Até que alguém diga o contrário, você está voltando para o Lorena. Mas vamos fazer assim: eu vou falar com a Monique pra ter certeza, e assim que estiver tudo certo a gente se fala de novo, tá?” ; “Então tá bom! (mais um sorriso na voz) Brigadããão, tchaaaau!”

Quer dizer então que eu vou voltar, é?  - pensei alto. Voltando ou não voltando, eu precisava resolver a vida antes de embarcar. Arrumar mala, comprar o que precisa levar para passar o mês – sabonete, pasta de dente, escova, remédio de gripe, dor de cabeça, essas coisas- e um violão . Eu precisava comprar um violão pra levar. Eu tenho um violão. Mas eu não poderia ficar toda vez levando e trazendo, por vários motivos. Só posso despachar uma bagagem de até 23kg sem pagar. O quilo extra custa 25 reais. É dinheiro pra diabo, rapaz. Pra ir e pra voltar? Toda vez? Eu não sou doido. Outra que quem despachar meu violão não vai ter um décimo do carinho que eu tenho com ele. Tanta porrada que o bichinho vai levar... que seja uma vez só. E em casa eu não vou ficar sem. Preciso comprar um violão. Pesquisei, escolhi três marcas, fui na rua da Carioca. “Desce lá o Tagima, o Strinberg e o Takamine. “ Tagima, custo benefício imbatível. Tá resolvido.

Quando foi na quarta-feira, chegou a passagem no e mail. sexta-feira, oito e alguma coisa da manhã. Agora eu estava mesmo voltando. Printei a passagem, mandei para a imediata pelo zap. “Tô voltando!” ; “Ai, que bom! A gente aqui não estava sabendo ainda. Não tinha chegado pra mim.” ; “Então, o embarque é dia de sábado? A passagem tá pra sexta de manhã...” ; “Ih, tá errado. Liga pra elas e avisa. “ ; “Tá ok. Mas deixa eu te perguntar. Então agora eu estou fixo no navio, ou não tem nada resolvido? É que comprei um violão pra deixar a bordo, e quero saber se posso levar.” ; “Não, ainda não quer dizer que você está fixo. Mas você pode sim, trazer o violão, ué.” ; “Posso não, só levo pra onde eu ficar fixo, só levo uma vez.” Passagem trocada. Quinta-feira, meio dia e pouquinho. “Pai, me leva?” ; “Levo, filho. Passo aí de manhã cedo.” ; “Pô, valeu.”

Chegando no aeroporto, fui logo fazer o check-in . Era cedo e eu não queria ficar carregando a mala pra todo lado. Melhor despachar logo. Deu erro lá, não conseguia fazer nem a pau. Fui no supervisor, que conversava com outro funcionário. Enquanto eu esperava eles terminarem, chegou uma senhora, depois uma menina. Ele atendeu as duas – que também iam para Fortaleza – e só depois me dirigiu a palavra. “Fortaleza também?” ; “Fortaleza também.” Mexeu lá no computador, pronto. “Pode deixar sua bagagem aqui comigo, senhor. Eu mesmo despacho. “ E me deu lá os adesivos de bagagem. Como eu  havia ficado só com a mochila, podia andar com mais liberdade. Fui pro lado de fora fumar. “Aí, show, bora dar um brilho aí no tênis?” Do lado de fora do aeroporto há vários engraxates. “Pô, negão, olha aí. Primeira vez que eu uso depois de tirar da máquina de lavar. Tá zero bala.” ; “Deixa o amigo garantir o almoço, na moral?” ;  “Já é, segura aí (e dei duas de dois a ele). Aí, cadê o Quinho?  Trabalha mais aí não?” ; “Trabalha, pô. Conhece o Quinho, tu? “ ; “Conheço geral aí, rapaz. Só não conheço é você . Tu é da Nova Holanda também? “; “Sou também. Como que tu conhece os caras?” ; “Ah, quando o terminal um ainda funcionava eu vinha todo dia na polícia federal fazer os documentos dos gringos. Aí almoçava lá no fome zero , pô. Quinho ia lá direto. Ele, os moleques aí tudo.” ; “Tá ligado, né.” ; “É, pô. Uma vez até fiz um samba sobre os engraxates lá do centro. Falando do golpe do 3,20. O Quinho se amarrou. É samba de breque.” ; “É mermo? Então manda aí!”

O samba do engraxate

Caixinha, graxa e escova, transeunte não se mova, me deixe trabalhar (o seu pisante vai brilhar)

Tenho aqui tanto produto, que imitação de couro bruto reluz em cromo alemão (por três e vinte é um negoção!)

Não saia de fininho, tenho ali três amiguinho pra garantir o serviço, vamos deixar de reboliço

Pra quê reclamar, se o assoalho vai brilhar onde o senhor passar? (Vai parecer um popstar!)Dobro sua calça, passo a graxa, bato a caixa pedindo o outro pé (já sabes bem como é que é)

Meu pano nervoso vai deixar tudo lustroso, e estamos quase conversados (só falta agora os meus trocados)

Pra cada pé são três de vinte, no total dá cento e vinte, pois trabalho bom é raro ( e o combinado não sai caro)

Deus do céu, não reparei, o senhor é homem da lei, acho que dessa vez rodei!

Meu caro cana, não se zangue, não suje suas mãos de sangue por um mal entendido (já inclusive, resolvido)

Acontece, meu nobre, que a astúcia é a coragem do pobre, como já disse Ariano (ainda aos vinte e poucos anos)

Leve de graça essa graxa, pra ninguém dizer que acha que tenho má intenção. Trabalhador não é ladrão!

Eu tenho é credibilidade em todo o centro da cidade, e o cliente tem razão.

“Hahahaha, representou! Aí, bota esse bagulho pra frente, que vai dar certo, mano. Deixa eu correr, valeu!” ; “Pô, manda um abraço lá pro Quinho, pros moleques tudo lá, hein!”

LEANDRO

E fui fazendo hora, andei tudo dentro do aeroporto. Resolvi ir para a área de embarque. No detector de metais, prenderam meu isqueiro. A menina do detector de metais deu “bom dia senhor, esvazie os bolsos aqui nessa caixinha, por gentileza.”; “Acho que foi tudo.” ; “E esse isqueiro aqui?” ; “Bonitão, né?” ; “Mas é um isqueiro normal?” – e tentava, mas não conseguia saber como botar o isqueiro pra funcionar. “Não, pô. Esse aí sabe álgebra!” – Rimos muito, acendi o isqueiro e ela disse “ih, é maçarico. É que maçarico não pode.”; “Ah, besteira, pô. Esquece isso.” ; “Poxa, senhor. Eu vou precisar chamar o Leandro. LEAN...” ; “NÃO, NÃO, não chama o Leandro não, que ele vai criar o maior caso, vai querer roubar meu isqueiro, e ele nem fuma.” ; “Rs, pior que ele nem é mesmo fumante. Eu que sou.” ; “Ah, tá explicado.” ; “Mas eu não posso ficar com o isqueiro do senhor. Ele vai para aquela lixeira ali, de produtos inflamáveis.” ; “Ah, claro. Aquela ali que é só tirar a outra lixeira que tem em cima e escolher o que você quer, né? Uhum. Por isso que você tá rindo. Porque nenhum outro ser humano vai tocar de novo no meu isqueiro nos próximos  dez minutos.” – Leandro chegou e logo ficou a par da situação. “Porra, parceiro. Cinquenta cruzeiros esse isqueiro aí, pô! Tu nem fuma e vai embarreirar meu isqueiro, cara?”; “Senhor, esse isqueiro é maçarico. Se fosse um isqueiro comum, até poderia. É medida de segurança.” ; “Olha pra minha cara, Leandro. Eu nunca taquei fogo em avião nenhum não. Não é hoje que eu vou começar, né? Pô, vê como que faz aí... Já tá juntando gente aqui na fila, ó. É mais jogo tu me liberar.” Uma mulher esperava sua vez de passar a bagagem no raio x . Estava com a filha adolescente. Quando olhei pra trás , vi que ela estava achando o maior barato a minha conversa com o Leandro. Com toda a certeza do mundo ela não era do Rio. Se fosse, estaria de saco cheio. “Senhor, o senhor pode voltar lá e despachar, se quiser.” ; “Leandro. Tu tá me gastando que eu vou ,porra, despachar um isqueiro, irmão? Vai custar uns trezentos contos despachar isso aqui. Pô, cara. Nunca deu problema!” ; “É, mas hoje deu, senhor. Sinto muito.” ; “Ah, porra. Se eu soubesse, já tinha tacado fogo no avião antes. Fui deixar pra tacar logo hoje que você tá aqui. Tu quer o isqueiro, mermão? Toma o isqueiro! Feliz natal!” Ele doido pra rir, eu saí sorrindo, sacudindo a cabeça e resmungando “puta sacanagem, cara”. Rio de Janeiro. Aqui a gente faz amizade até discutindo.

 AMIGO OCULTO – O SORTEIO

No embarque passado, o chefe de máquinas comemorou seu aniversário de 65 anos. Ainda teremos outras oportunidades para falar sobre esse personagem. Ele não sabe, mas me ajuda muito a construir melhor o universo dos outros tripulantes. Quanto menos ele souber, mas vai me ajudar. Ele se emocionou, falou com os olhos tremendo e rasos d’água que estava chegando ao fim da expectativa de vida e pedia a Deus mais cinco anos. No final da comemoração, um saquinho com os nomes dos tripulantes passou na mão de cada um. Era o sorteio do amigo oculto. Na mão de quase todo mundo, na verdade. A imediata ficou sem jeito quando teve que passar direto por mim, já que até então, eu não voltaria. A verdade é que eu fiquei aliviado. Eu não gosto de amigo oculto. Aqui, o valor mínimo do presente é de cinquenta reais. “Cinquenta reais o mínimo? Ainda bem que ela passou direto.” Todos são gentilmente obrigados a participar. Mas não é só por ser pão duro com gastos desnecessários em benefício de gente que eu não conheço ou estimo que eu não gosto de amigo oculto. Pensando bem, não é que eu não goste de amigo oculto. Eu até tolero. Eu não gosto é de amigo oculto no trabalho.

Eu nunca trabalhei mandando em ninguém. Fui sempre a base da pirâmide, em todos os trabalhos. Qual o sentido de no final do ano eu dar presente a quem mandou em mim, descontou em mim suas próprias cobranças, falou “dá seu jeito, eu quero pronto”, enfim. Quem é ou já foi pau-mandado que complete aqui a lista. Para mim não há sentido nenhum. Na verdade, nunca vi um amigo oculto de trabalho com sorrisos reais. Feliz de quem viu. Não gosto. Me perdoem. Só acho que é uma brincadeira para ser feita entre amigos; inclusive é o que sugere o nome do jogo.

Lembrei do último motivo pela minha aversão ao amigo oculto de empresa quando vi uma lista de sugestão de presentes circulando no dia seguinte. Ao lado de seu nome impresso, cada tripulante sugeria o que gostaria de ganhar. Vários pediam “perfume tal”. Nilson disse “armaria, macho! O caba que eu tirei quer um perfume que custa uns duzentos pau!” Quer dizer: o cara pede alto. Se sou eu que sorteio o nome dele, ele vai ficar puto – que eu não vou dar um perfume desse. Por isso eu repito. É uma brincadeira para ser feita entre amigos. Voltaremos ao momento mágico da brincadeira do amigo oculto na noite de natal.

Ainda na área de embarque, recebi uma mensagem da imediata da minha turma: “Arthur, você precisa trazer um presente para o amigo oculto. Traz uma coisa pra homem. Traz um perfume, uma camisa, não sei.” “Ué? Mas Eu não tirei o nome de ninguém, não vou ficar fixo no navio, como faz? “ – e aqui, meus amigos; eu já tinha visto que isso ia dar merda. “Você vai ficar fixo no navio, sim. Confirmamos aqui. Dá o seu jeito aí, traz um presente.” É muito difícil ficar feliz completamente. Para cada notícia boa, duas ruins. “Ótimo, estou fixo no navio. Porra, vou ter que participar do amigo oculto e levar um presente que não sei nem pra quem vou dar. Que merda, comprei o violão pra trazer, ele ficou em casa e agora me dizem que poderia ter levado. Filha da puta, se eu tivesse tirado o gás do isqueiro, o Leandro não tinha tomado de mim! Como eu não pensei nisso antes?”

FORTALEZA

Deixei as coisas no hotel e logo saí. Precisava resolver logo o presente do meu amigo que era oculto até pra mim. Precisava almoçar também. O hotel fica na Beira-Mar. Andando pela praia, pensei no presente. Bom, já que eu não sei quem é a pessoa, acho que a coisa mais sensata é dar um vale-presente de alguma loja. De uma loja que tenha em qualquer lugar do país. E que a maioria das pessoas goste. Pronto. Vale-presente do Boticário. Quem não quiser, dá pra mulher. Ela vai gostar. Muito melhor do que comprar uma outra coisa e a pessoa fazer aquela cara de namorado indo almoçar pela primeira vez na casa da namorada, e chegando lá a sogra diz “é sarapatel. Você gosta, né? “ – e põe um prato de peão pro moleque que cata até cebola na farofa.

Sim. Um vale-presente. Se eu ganho um perfume, eu ia ficar muito injuriado. Poucos presentes são mais pessoais que um perfume. Toma um vale-presente. Vai lá e troca pelo que você gosta. Simples e sem erro. Não arranca um sorriso enorme do presenteado, mas é garantido que não termina em sorriso de sarapatel. E a minha preocupação é não dar sarapatel de presente de natal. Comprei o vale-presente na loja do shopping Del Mare, perto de onde eu estava. Saindo de lá, fui a uma banca de jornal comprar um isqueiro vagabundo. “Fala, meu patrão! O que o senhor quer?” ; “Quero um isqueiro e uma informação. Onde eu almoço bem aqui em Fortaleza? Uma comida local com preço justo?” ; “Ah, aí é no mercado de peixe. Vale a pena.” Peguei um Uber, cheguei lá. Vários estandes vendendo peixe, camarão, lagosta, todos os frutos do mar. Na beira da praia, no final do calçadão.

Os restaurantes ficam no final dos corredores, bem pertinho da água. Escolhi um e sentei. Passou uma boa meia hora e ninguém veio me atender. Peguei o cardápio,  levei até um garçom e comecei a pedir. “Não, aqui não é assim. O senhor tem que trazer seu peixe, seu camarão, o que o senhor for comer. Esse preço aí é o do preparo.” Bem que eu tinha achado barato demais. Onze reais por uma porção de camarão?

Levantei e fui nos estandes. “Fala, irmão. Quanto tá o camarão?”; “Vinte reais o quilo, chefe.”; “Beleza, me vê meio quilo.” ;  “Só? Por que o senhor não leva um quilo? O pessoal costuma levar e deixar congelando no hotel. Depois, se vier aqui de novo almoçar, e só trazer. Ou levar embora com o senhor.” ;  “Rapaz, seria ótimo. Só que eu vou embora hoje, e vou ficar trinta e cinco dias embarcado. Nem tem como. Lá tem camarão também. E não vou levar meio quilo de camarão no avião; ainda mais congelado por tanto tempo. É só para a gora, mesmo.”; “Então tá bom. Toma setecentos gramas.” E foi assim que eu comprei setecentos gramas de camarão fresco por dez reais. “Pô, sentei ali, fiquei meia hora e ninguém veio me atender. Quando fui atrás do cara, ele disse que tinha que vir aqui primeiro.”; “Ah, aqui é assim. Em qual restaurante você foi?”; “Aquele. Qual é o bom?” ; “Aquele ali, ó. Chega ali, já bota o camarão no balcão e pode sentar na mesa que o garçom vai lá.”

Paguei mais dez reais no preparo do camarão ao alho e óleo. Mais uma porção de macaxeira e uma de baião de dois. Mais ou menos dez reais cada um, também. Em pouquíssimo tempo, veio a macaxeira. Ainda que eu não tivesse pedido mais nada, nunca conseguiria comer aquilo tudo. “Beber, chefe?” ; “Rapaz, quero a cajuína.” ; “Cajuína não tem.” ; “Pô, que isso? Não tem cajuína na terra da cajuína? Beleza, traz essa jarra de água de côco.” E daqui a pouco chegaram a água de côco, o baião de dois, e uma travessa gigante de camarão. Quando olhei aquilo tudo, pensei que nunca mais levantaria dali. E que era bom eu começar depressa. Para a minha sorte, na metade da segunda rodada, apareceu uma menina “moço, será que se sobrar alguma coisa você pode me deixar comer?” ; “Cara, ainda bem que você chegou! Senta aí e come comigo, por favor. Isso aqui tudo precisa acabar, e eu não vou conseguir sozinho.” Eu comi três vezes. Ela comeu duas. E sobrou comida. Antes de sair de lá, passei em um outro restaurante e perguntei se tinha cajuína, que seria muito triste sair da cidade sem provar. Da garrafa de seiscentos ml, bebi dois copos. Se bebesse mais uma gota, sairia um camarão pelo nariz. Olhei a orla  já com a noite posta. O hotel fica lá no final. Deviam ser entre cinco e sete quilômetros de caminhada. Já havia feito o que deveria e o que gostaria. Tinha tempo e quilos para gastar.

SERÁ QUE NÃO É HOJE?

Às duas da manhã recebi uma mensagem. “Arthur. O guindaste da base está ruim. Estão tentando consertar, mas não se sabe se vai dar certo. Pode dormir. A van vai passar no hotel às seis da manhã.” Dei graças a Deus e dormi novamente. No dia seguinte, ainda consegui pegar o café da manhã no hotel. A van só chegou depois das sete. Ainda passaríamos em outros locais para buscar os tripulantes que moram em Fortaleza. No caminho, fui parabenizado pelos outros por ter voltado. Chegando na base, em Paracuru, soubemos que o guindaste ainda não estava pronto. Já era pra lá de meio dia. “Se passar de três horas da tarde, a gente não vai. São duas horas de lancha até a plataforma. Não podemos viajar de cesta depois que escurece.” Tive esperança de passar mais um dia em Fortaleza. Mas não deu. Pouco depois das duas da tarde o guindaste ficou pronto. E embarcamos.

A MULHER DE ALUÍSIO

Quando começamos a trabalhar, entrei na cozinha e Nilson disse: “falei pra tu, rapaz. Encontrei o Aluísio. Estava sentado com a mulher dele no restaurante. Falei com ele que o comandante estava chamando pra embarcar aqui. Na hora a mulher dele olhou para baixo e fez que não com a cabeça. Tô te dizendo, macho. O negócio deles é dólar. Nem precisei falar mal do navio, ele mesmo já disse que não vinha. Aí a mulher dele ficou normal de novo. Falei que tu voltava, rapaz.”

MACUMBA DAQUELA BEM BRABA
            
    Eu funciono muito melhor com música. Nietzsche disse que “sem a música, a vida seria um erro.” Ele estava coberto de razão. Das artes, a que melhor dialoga com o espírito. A que melhor abre portas ao pensamento. A que diz a cada um aquilo que precisa ser dito a si, ainda que sem palavras, ainda que sem idioma. Há quem não goste de quase nada, mas ainda não encontrei aquele que não gostasse de música. Uns gostam mais, outros menos. Entre tantos estilos para se conhecer e apreciar, há (e como há) uma legião que pensa gostar do que o Deus mercado assim lhes incute. E fecham a mente para todo o resto. E assim como são as pessoas, são também as criaturas.

                No meu primeiro embarque por aqui, eu colocava meu celular para tocar na copa dentro de um pote de sorvete. O som encorpava mais, não ficava tão disperso. Ali vinha blues, forró pé-de-serra, orquestras com música clássica, salsa, chorinho, e uma enxurrada de samba; entre outros estilos. E se tem música eu estou sempre cantando. Só ando pelo centro da cidade com meu grande headphone. Andando e cantando. Muita gente olha e acha graça, acham que eu esqueci que estou no meio dos outros. Pois se eu canto na frente dos conhecidos, que dirá na frente de quem corro o risco de nunca voltar a ver.

                Por aqui, a música foi um elemento socializador entre os antigos e o novo tripulante. Enquanto trabalho na minha copa, as pessoas entram e instintivamente sorriem na minha direção ao me ouvir cantar. “Só no sambinha, né? Tá certo!”. Como o samba de raiz é um estilo conhecido em todo o país, eu acabo trazendo memórias afetivas das pessoas através das músicas que ouço e canto. Eis um poder gigantesco entre outros que a música tem. Trazer ao presente com intensidade impressionante o mesmo perfume de momentos idos. Há pesquisas sendo feitas em casas de repouso de idosos utilizando a música de maneira extremamente eficaz.

Pegam um senhor com alguma demência, Alzheimer ou qualquer doença que resulte em perda de função cognitiva, estudam o ambiente musical de sua juventude, perguntam a ele e à família o que ele gostava de ouvir, o que cantava. Baixam tudo, colocam em um aparelho de MP3 e dão ao velhinho com um fone de ouvido. Está feito o milagre. Até os menos responsivos passam a falar de sua juventude, dos clubes que frequentavam, das roupas que usavam nas ocasiões. Um turbilhão de memórias que pareciam prescritas pela inércia de seus corpos e mentes, agora fazem seus olhos brilharem como nunca se imaginou ser possível novamente. Um pouco da atenção de um jovem pode fazer uma diferença monumental  para alguém que já faz hora extra na vida.

O fato é que as pessoas costumam gostar do meu repertório. “Poxa, você tem isso em um pendrive? Pode me passar logo mais?”. Só no celular, pra ouvir enquanto caminho, dirijo ou trabalho; tenho mais de dezesseis horas de samba. Foi o samba que me fez comprar meu primeiro hd externo.

Nesse segundo embarque, contando com a aprovação prévia do repertório, resolvi trazer uma caixa de som com conexão bluetooth. O som é melhor que no celular, mais bem equalizado. E eu ainda posso andar com o telefone no bolso enquanto a música permanece lá no lugar onde eu preciso que ela fique. E deu certo. Música clássica ou chorinho pela manhã e estilos variados durante o decorrer do dia. Mas sempre um samba. O que eu posso fazer se não inventaram brinquedo melhor? Quem não gosta, não presta; já dizia Ataulfo.

Um dia ouvi alguém conversando no refeitório sobre a importância que a empresa dá à tolerância religiosa. Na ambientação, lá atrás, no hotel da Lapa, um dos diretores havia falado sobre o assunto. Disse que é coisa séria, que havendo problema, entre em contato com a ouvidoria. Eles caem dentro. O chefe de máquinas entrou na copa para um de seus inúmeros cafés. “Aí, chefe. Pessoal aí estava falando de tolerância religiosa na empresa, e tal. Fiquei com vontade de testar isso aí. Tô pensando aqui em fazer uma lista de música de macumba. Botar pra tocar macumba aqui da hora do café até a hora da janta. O que o senhor acha?” ; “Ih, acho ótimo! Bota mesmo! Mas bota macumba daquela bem braba!” ; “Hahahaha, o senhor é o melhor, chefe. Então prepara que amanhã o tambor vai comer aqui.”

Concomitante a meu último comentário, entrava no refeitório uma oficial. Quando ouviu a conversa, olhou para mim de cenho franzido e disse “tá repreendido em nome de Jesus!” – ao que eu respondi “ah, a senhora é intolerante.” ; “Sim. Sou sim!” ; “Então acho que amanhã não será um bom dia para você.”

Abri o hd e fui procurando o que tinha. Jongo, samba, tudo o que mencionava matriz africana, orixás, termos em yorubá. Uns maculelês, uns cânticos de trabalho (tipo ensaboa mulata), umas ladainhas de capoeira. Não coloquei na lista nenhum único ponto de macumba. Só fui mais pra dentro da raiz da música brasileira, só isso.  Juntei por volta de cinco horas de reprodução .

No café da manhã seguinte, assim que o chefe entrou no refeitório, gritou “Arthur, cadê a macumba?” ; “Chefe, rapaz, você que mesmo, né?” ; “Claro, pô! Não falou que ia botar? Bota!” ; “Então toma!”. E na mesma hora, Clementina de Jesus perguntava repetidamente para os presentes, como se, de dentro da caixa de som esperasse que alguém respondesse:  “ô pica-pau, que demanda tem com baraúna?”

Alguns minutos depois, quem foi que entrou para tomar café? Bingo! Dessa vez era Ivone Lara quem perguntava “vixe, minha nossa senhora! Cadê o candeeiro de vovó?” ; “Arthur, será que você pode baixar o som, por favor?” ; “Claro que posso.” Essa foi a primeira vez que alguém me pedia para abaixar o som de minhas músicas. O problema era que apesar de ter abaixado o volume, eu continuava cantando, como sempre. Como que por intervenção divina, Candeia começou a pedir “sinhá dona da casa, me dê permissão, sinhá dona da casa, me dê permissão.” Alguma conversa que eu não conseguia ouvir começou a acontecer no refeitório, quando um entrou para deixar o prato, olhou para trás e disse “mas a cultura brasileira é isso aqui, ó!” – e apontou para a caixinha. E arrematei “exatamente. Embora muitos não queiram, não existe nada mais nacional do que isso.”

Ali, pronto. O satanás que ela procurava nas minhas músicas baixou foi em seus olhos. “Você queria ser preto, né, Arthur?” ; “Minha flor, a questão aqui é muito menos se alguém queria ou não ser preto, do que alguém que tem horror a ser, mesmo que um pouquinho de nada.”

No embarque anterior, conversávamos alguns sobre religiões. Ela no meio. Perguntei “você já leu o Gita? É uma parte do livro sagrado do hinduísmo, o Mahabarata. É a coisa mais linda!” ; “Não li e nem nunca vou ler.” Me soa por demais contrassenso que à inteligência suprema, agrade a ignorância. Uma vez, quando ia ao centro de controle procurar algum documento, ela pediu para me mostrar uma música. Era uma mulher que até começar a cantar, chorava por quase três minutos. Antes mesmo que ela começasse eu disse “você vai me perdoar, mas música, pra mim, é alegria. Até mesmo as mais tristes. Essa música aí é sofrimento.” ; “Você não gosta de gospel?” ; “Adoro. O blues, o reggae, o samba. São maravilhosos quando cantam gospel. Aliás, nasceram do gospel. Essa música de igreja, tanto da católica quanto da neopentecostal, quanto do próprio kardecismo; eu acho um saco. E já ouvi de todas essas religiões para poder dizer com conhecimento de causa que são todas um porre. Apesar de contar com músicos excelentes, acho que todos estão tocando um monte de música porcaria.”

Se na minha caixinha, eu estivesse ouvindo esse bando de sertanejo dos infernos mandando todo mundo encher a cara e dirigir, trepar de batalhão e acordar o prédio inteiro, estava tudo certo. Se eu colocasse uma cítara indiana, um conjunto cantando em árabe, seria exótico. Se fosse um canto gregoriano era uma beleza. Se fosse a música da mulher chorando, ô glória! Mas vai botar um tambor pra bater. Acontece que a cítara, o árabe, o canto gregoriano; são grandes desconhecidos para nós. E aí todo mundo acha bonito de maneira curiosa. Mas quando o desconhecido é a base da nossa própria cultura, desconhecemos por escolha. E a isso é dado o nome de recalque histórico. O maior recalque da história do Brasil é a escravidão. E quanto menos se fala sobre um recalque, mas ele se reproduz. Por isso a música da mulher chorando toca no passadiço, na sala de tv, no centro de controle. E também por isso a macumba toca onde sempre tocou. Na cozinha.

Não tirei a macumba, não. Tocou o dia quase inteiro. Alguns entravam, arqueavam as costas, botavam a mão para trás, faziam um “hêp”, e sorriam, numa brincadeira para dizer que tudo bem. Não sabiam como, mas tentavam reagir positivamente, eu via isso. Havia também quem não comentasse nem para bem nem para mau. Ótimo, é aí que mora o respeito. No outro dia, entrando no camarote do comandante, vi o livro com o título que era mais ou menos “o significado da vida segundo o espiritismo”, uma coisa assim. “Comandante, o senhor é espírita ou é curioso?” ; “Rapaz, eu sou mais kardecista. Mas na minha família tem de tudo: católico, protestante, kardecista, e minha avó que era da umbanda.” ; “Pô, sério? Que bom saber disso!” – e fiquei muito tranquilo. Quem é que ia se queixar com o comandante dizendo que a avó dele gostava do diabo?


EU, ASSEDIADOR DA JOVEM CAMPONESA DE CORAÇÃO NOBRE QUE VAI TODOS OS DIAS AO BOSQUE PARA RECOLHER LENHA

Alguns dias depois, essa mesma figura  do episódio da macumba levanta da mesa dos oficiais, entra na copa dizendo “ai, aconteceu um acidente!” ; “Acidente? Que acidente?” ; “Um acidente!” – ela foi até o final da copa. Entre a geladeira e a bancada onde fica a sanduicheira. Ficou de costas para mim, levantou a blusa até a altura dos peitos, e mexeu na parte da frente, por debaixo d a blusa. Estava fechando o sutiã, que havia se soltado. Quando eu percebi o que estava acontecendo, baixei a cabeça e saí da copa.

Me chamem do que quiserem, mas eu detesto mulher a bordo. Sinto muito. Posso até cair no conceito de alguns. Paciência. O fato é que alguns problemas que elas criam podem ser irreparáveis. Antes do meu caso, um exemplo que conheci somente por ouvir dizer.

Um comandante casado. Uma praticante novinha, tendo acabado de sair da escola de formação de oficiais. Acreditem ou não, dificilmente alguém dá em cima de mulher a bordo. Assédio dá justa causa. Onde se ganha o pão não se come a carne. A praticante dá mole pro comandante. O comandante come a praticante. Uma, duas, dez vezes. A praticante começa a querer ser namorada ou mais que isso. O comandante não vai largar o casamento por causa de uma praticante. Um dia, no camarote do comandante, ela tenta. Ele diz não. Ele diz não mais. A praticante desarruma o cabelo e a roupa e dá um berro “socorro, socorro, tá tentando me comer.” Olha o tamanho desta quizumba. O navio para de operar, entra em down time (quando o contratante para de pagar, e todos os gastos ficam por conta da empresa dona do navio) . Sobe gerente. Sobe RH. Sobe marinha. Sobe Polícia Federal. Justa causa no comandante. Na empresa, na carreira e no casamento. E o cara era comandante. Imaginem se fosse um canela. Imaginem se fosse o mais canela dos canelas: o taifeiro. Pois é. “Ah, mas a culpa é dele, que foi chifrar a mulher.” Gente, por favor, né?

Enfim. Na noite seguinte ao “acidente” , fui levar café no centro de controle. Estava ela lá, sozinha. “Poxa, queria te pedir uma coisa. Não faz mais aquilo de novo não, por favor. Aquilo do seu acidente. Aqui é navio, todo mundo trancado aqui. Não é legal. Se ainda você fosse uma mulher toda desconjuntada, toda ridícula, eu ia achar era graça, ia passar batido. Mas não é o caso. Então, se acontecer de novo, procura um outro lugar pra se ajeitar. Tudo bem?” . Ela me olhou meio embasbacada. Passou.

Quando foi uns três dias depois, eu levando café no mesmo horário – tenho que levar em vários horários, nesse horário é ela quem está lá; normalmente sozinha. Assim que entrei, ela brincando disse “quero café AGORA.” . Eu que pago brincadeira com brincadeira, levantei a garrafa térmica acima de sua cabeça e disse  “então tá. Abre a boca aí.”. Nesse momento infeliz, ela disse “deixe de ideia, seu filho de uma égua.”.

Eu parei, respirei, e vi que eu deveria falar o que falaria: “olha: a gente trabalha junto, eu me dou bem com todo mundo, brinco com todo mundo, só que tem limite. Você acabou de passar do limite.” ; “Eu passei do limite? Como?” ; “Ora, você acabou de me chamar de filho de uma égua e tá tudo bem?” ; “Mas você também xinga. E xinga muito, né? “ ; “Concordo. Carioca xinga pra tudo. Mas quantas vezes desde que subi aqui pela primeira vez eu direcionei um palavrão a você? Quantas vezes eu TE xinguei? Pois é , nenhuma. Quando eu xingo, não falto com o respeito a ninguém. É aí que você passou do limite.” ; “Ah, você quer falar de limite? Pois você passou do limite comigo também. Lá no dia do sutiã.” ; “Como é que é? Você levanta a roupa na minha frente, eu te digo para você não fazer de novo, e eu estou errado?” ; “Se eu quiser, posso dar parte sua.” ; “É o quê?” ; “É isso mesmo. Se eu quiser, posso dar parte sua.” – fechei a cara e respondi “ é contigo mesmo. Só que primeiro você explica pro teu marido que foi levantar a roupa na minha frente. Se não tinha problema nenhum, deveria ter levantado na mesa mesmo, na frente do comandante, do chefe de máquinas, da imediata.”. Alguma verdade pareceu saltar aos olhos dela, pois as pálpebras levantaram sem que as sobrancelhas se movessem.

Subi muito puto da minha vida. Os noventa dias do contrato de experiência haviam terminado no dia anterior, dezessete de dezembro. Um dia depois, vinha isso. Sentei na sala de fumar. Um enorme problema se apresentava. Acendi um cigarro enquanto pensava. “Se eu deixar isso pra lá, ela pode ir à imediata ou ao comandante reclamar. Aí fodeu. Vai ser como se eu tivesse feito e ficado quieto. Até provar que merda de cabrito não é bola de gude eu já tô com a mão toda cagada. Se eu for falar com a imediata, ela é mulher e amiga dela. Se conhecem há anos, e eu aqui há um mês. Vai dar merda. Se eu for direto no comandante que é homem, estou errado de passar por cima da imediata – que é minha responsável direta. Só tem um jeito, e mesmo assim é perigoso. Falar com imediata e comandante ao mesmo tempo. Ele é homem e tem mais poder que a imediata. O que ele resolver, tá resolvido. Pode dar merda? Pode, e vai. Mas é onde pode dar menos merda. Agora só falta pensar no que eu vou falar para que dê menos merda.” – e acendi o segundo cigarro.

O comandante sentado na poltrona de seu camarote, assistindo televisão. “Comandante, infelizmente eu tenho um assunto muito ruim para conversar com o senhor. Mas gostaria que a imediata estivesse junto. Posso chamar?”. Ele tirou os óculos, e com a fronte pesada disse “pode sim.” ; “Imediata, eu queria conversar com a senhora e com o comandante, lá no camarote dele. É sério.” ; “É agora?”; “Quanto mais rápido, melhor. Prefiro que seja agora.” – e voltei ao camarote do comandante. Puxei uma cadeira, esperei a imediata sentar, e comecei.

Descrevi a situação da mesma forma que fiz acima e comecei a minha defesa. “Acreditem vocês ou não, desde o dia que tocou macumba na cozinha ela age diferente comigo. Mas o caso aqui não é esse. Comandante, o senhor é casado. Se o senhor fica sabendo que sua mulher levantou a roupa na frente de outro cara? Tá tudo bem?”- ele balançou a cabeça que não. “Imediata, da mesma forma, a senhora é mulher. Se o comandante levanta e ficamos os dois sozinhos aqui, e de repente eu enfio a mão dentro das calças e fico me ajeitando, me coçando, me alisando. Tudo bem, ou é uma grande falta de respeito com a senhora? Pois é. Eu preciso que vocês percebam que esse episódio deve ser entendido como uma falta de respeito da mesma dimensão. Se não havia problema, qual o motivo dela não ter feito na frente de vocês, que se conhecem a tanto tempo? Era um problema fazer na frente de vocês, mas não na minha frente? Olha, imediata. Eu sei que quando uma coisa dessas acontece, a culpa é do homem a priori. Eu sei disso e eu concordo com isso. O meu gênero faz muito por onde isso ser verdade. Olha o João de Deus aí. Reconhecido no mundo inteiro. Imagina eu! Só que eu não sou doido de fazer isso. Ou vocês acham que o funcionário mais abaixo no organograma, em período de experiência ia tentar uma dessa logo com oficial, casada com oficial da mesma empresa? Se eu ainda fosse burro, mas isso vocês já sabem que eu não sou. Eu sei que ela é adulta, mas na verdade é uma menina, não tem maldade.” – os dois fizeram que sim várias vezes, como que em coreografia. “Pois é, mas não é porque eu tenho malícia de sobra para nós quatro; que eu vou pagar pela inocência dela. Isso eu não vou. Se para resolver esse caso, vocês acharem por bem me tirar do navio, me mandarem para um 60x60, fechado. Tudo bem. Não vou guardar mágoa de nenhum dos dois. Volta tudo ao normal por aqui. É bom para todo mundo. Agora, eu sei que fiquei fixo aqui, não porque me acharam divertido. Mas porque eu trabalho bem. Se não, eu não teria voltado. Não teria ficado na escala que a empresa inteira quer pegar. Antes de começar a falar, eu já sabia o tamanho do problema que eu estava trazendo para vocês. Mas pensem comigo: se eu fico quieto e ela é quem chega pra falar com vocês primeiro; assim que eu começasse a me defender, sabe o que o senhor ia perguntar para mim, comandante? – Arthur, então por que você não veio me dizer isso na mesma hora? – Então eu vim aqui dizer na mesma hora. Os três fatos aqui são: ela praticou abertamente intolerância religiosa – um monte de gente viu. Levantou a roupa na minha frente, e me chamou de filho de uma égua. Ela diz que pode dar parte de mim por um assédio que não aconteceu. Nem por isso eu vou dar parte dela por nenhum desse três momentos em que ela me faltou com o respeito por diferentes motivos, vejam vocês.”

Arthur Schopenhauer escreveu um livro chamado “como vencer um debate sem precisar ter razão”. Eu tenho esse livro. Ele te ajuda quando você não tem razão. Mas te ajuda muito mais quando você já tem. Você identifica as falácias e caminhos retóricos do interlocutor antes mesmo que elas sejam ditas. Com isso, prepara seu argumento de maneira a avisar ao ouvinte que, se por acaso tal ou qual coisa seja dita, aqui já está a prova do contrário. “Olha, Arthur. A gente vai conversar aqui sozinho, você pode descer. Depois a gente vai conversar com ela. E no final, a gente te chama para conversar de novo. Mas fica tranquilo.” ; “Olha, Arthur. Eu sou mulher, sou sim amiga dela. Mas aqui em cima eu sou imediata. E eu separo muito bem as coisas. Pode se acalmar. Você não fez nada. Eu conheço ela e sei que ela pode ter feito isso sem pensar no que poderia acontecer. Você fez bem em vir falar com a gente. Pode ir.”

Horas depois o telefone do meu camarote tocou. Pediam para que eu subisse. “Arthur, nós conversamos entre nós, conversamos com ela. Eu entendo que os dois erraram.” (Hã?) “Se fosse outra administração, as providências tomadas seriam outras; é importante que você saiba. Mas nós sabemos que vocês são duas pessoas boas, duas pessoas esclarecidas. Então vamos deixar isso pra lá, com o tempo vai ser como se nada disso tivesse acontecido.”

Na cozinha, conversando com Cabeça e Nilson, eles perguntaram “e onde foi que você errou?” ; “Porra, errei em ser taifeiro, né?” ; “Rapaz, é mesmo. O outro comandante que tinha aí dizia no refeitório cheio: - Eu nunca vou ficar contra o oficial. O chapéu que ele usa, cabe na minha cabeça.” ; “Rapaz, eu já consegui que não desse merda nenhuma pra mim, vocês querem que eu pergunte aonde eu errei? Deixa isso pra lá...”. Entenderam o motivo para eu não gostar de mulher a bordo? Segue o baile. A verdade é que o canela

ESTÁ MUITO MAIS PARA BASTIÃO DA LINDA QUE PARA SEU FERNANDO

Uma das melhores coisas em se trabalhar a bordo, a meu ver; são as histórias que a gente ouve. Histórias de vida de pessoas que você nunca conheceria caso aqui não estivesse, histórias sobre o mar, histórias de pescadores que agora trabalham nos navios. Eu já trabalhei com gente do mundo inteiro. Já ouvi histórias do mundo inteiro. Americanos falam sobre geopolítica, guerras, mercado. Noruegueses falam sobre mar, sobre marinha. Filipinos falam sobre dólares. Alemães falam sobre imigração. Ingleses e escoceses falam entre si. Eu não sei se é pela criação e imersão na cultura brasileira que me trazem uma proximidade maior, mas as nossas histórias são de longe as melhores.

Temos nossas diferenças de território para território. Uma história de carioca, se contada no Norte, pode ser ofensiva. Uma história do Sul, se contada no sudeste, pode parecer esnobe. E por aí vai. Mas as histórias dos nordestinos são as campeãs. A simplicidade do cotidiano sobre o qual as histórias falam; a simplicidade na forma de contar; as gírias que eles usam para colorir a história. É fora de série.

Contudo, os nordestinos gostam de contar suas histórias entre si. Você já participou de um grupo de nordestinos contando seus causos? Dificilmente. Eu fico muito feliz em ouvir esses caras conversando no navio. Eu sou apenas ouvinte, mas agradeço pode poder participar. As histórias que as marés me trazem de todos os lugares do mundo são um dos motivos da existência dessa série de escritos.

Quando presto atenção nessa gente falando, presto atenção também na forma como eles pensam, tento entender como eles enxergam o mundo. Quero extrair o porquê daquela história merecer ser contada, ao invés de outras tantas. Sabemos que o brasileiro é um cara extremamente homofóbico. Mas tenho entendido que somos homofóbicos de diferentes maneiras, dependendo de onde estamos. Nos marítimos do Sudeste, a homofobia é mais grosseira, mais raivosa, violenta. No sul ela é menos comentada. Quando é, são usadas piadas de mau gosto. Mas tenho percebido que no Nordeste, a homossexualidade é entendida de maneira diversa. Me parece que por aqui, o homossexual é o passivo. O ativo no ato é muitas vezes visto como “o cara que comeu o viado”. Seguem, então, duas histórias de viado contadas pelos nordestinos. Primeiro a de Seu Fernando, um cara que comeu um viado; depois, a de Bastião da Linda. Ambas as histórias se passaram no Mucuripe, bairro pobre de Fortaleza.

Certo dia, no café da manhã, estávamos eu e Cabeça fazendo nossa refeição. Foi quando chegou Bira, marinheiro de convés, por volta de cinquenta anos, egresso da pesca. Sorriso verdadeiro e alma leve, própria dos puros e simples. Sentou à mesa e disse a Cabeça: “Bom dia, seu Fernando!” ; “Já vai começar a baitolagem! Diabéisso de seu Fernando?” ; “Hahahaha, pois eu vou contar logo. Diz que aí no Mucuripe tem esse seu Fernando. E ele comeu um viadinho de uns 16 anos assim. A mãe do menino descobriu, deu parte de seu Fernando. Antes do depoimento, o viadinho procurou seu Fernando e disse que era pra chegar lá; ele dizer que não teve nada disso não, que ele ia dizer a mesma coisa, e estava tudo resolvido. Seu Fernando disse que tudo bem, então. Aí, rapaz, quando foi na hora lá do depoimento, o delegado perguntou – E Então, seu Fernando? O senhor comeu ou não comeu o menino? E seu Fernando naquela, pescador brabo da porra... levantou e disse que não tinha ido ali pra mentir não, que mentira era coisa de cabra frouxo. Bateu na mesa e gritou – COMIIII!” Cabeça ria, e perguntou retoricamente “é mesmo, rapaz?” ; “’Hun? Aí quando ele passa lá no Mucuripe com a mulher dele, o povo fica gritando – Seu Fernando, comeu?? E ele grita COMIIII! Hahahah. E a mulher bate nele, no ombro – Homem, tu não tem vergonha não, é cabra? Oxxxi! - Aí a gente está agora chamando o Moisés de Seu Fernando, ele tá que só a porra!”.

De repente sai Nilson (morador do Mucuripe) da cozinha com o dedo em riste: “Rapaz, isso é história do Mucuripe que eu sei. Ó macho, o Mucuripe é foda com essas histórias, hein. E as véia? Ó, Arthur, tem umas véia lá que são fofoqueira que só a porra! Ói, uma vez as duas véia dentro do ônibus lá, o Meireles. O ônibus vixxxx, lotado! Uma vira pra outra e diz – Mulher, você não sabe! Eu vi uma coisa que afe Maria, eu não consigo nem falar! – Pois diga, mulher! – Pois então, não tem Bastião?  Bastião mora numa casa de taipa, né? – Que Bastião? – Bastiããão, mulher! Bastião da Linda, num sabe? Pois eu tava ouvindo uns barulhos vindo de lá. Aí fui assim na parede e butei o olho num buraquinho que tinha. Mulher, você não acredita! – Desembuche, diabo! – Mulher, o Bastião tarra dando o cu pra um caba lá! – OOOOOO CUUUUUU? – Ó, rapaz, e o ônibus lotado, macho. As véia conversando como se estivessem na sala da casa delas! – Olha, não posso dizer mesmo que tarra dando, que eu não vi entrando. Mas que era um tal que tirava de baixo, butarra na boca!” E a gente explodia na gargalhada.

Bira terminou de tomar seu café e saiu. Ficamos conversando: Cabeça, Nilson e eu. Um dos dois que não lembro agora batia no meu ombro e dizia “é, Seu Fernando!” ; “Rapaz, depois desses acontecimentos aí, esse papo de assédio, é muito mais fácil me pegarem pra Bastião da Linda que pra Seu Fernando...”

PLEIS-TEI-XO! PLEIS-TEI-XO!PLEIS-TEI-XO!

Então, é natal! E o que você fez? Porque eu trabalhei pra caceta. Nada de novo no front. Aquela comidalhada que poderia alimentar oito famílias, mas cada um belisca só um pedacinho. Sem problemas, serviremos sobras e sobremesas até o ano novo, quando tudo se repete. Balões coloridos, árvore de natal, toalhas de mesa para festa, discurso do comandante, da imediata, parará-pão-duro. A não ser que estamos no meio do mar; nada de diferente do natal do resto do mundo. Algumas piadas, risadas, pessoas que você não liga tanto - mas o espírito natalino manda que você sorria para ela, aquilo tudo. Lá no início do texto, eu havia dito que voltaria à história do amigo oculto. Vamos nessa.

O Bom dia e Cia era foi um programa que começou nos anos 90, era apresentado pela Eliana. Era a época de ouro das apresentadoras ninfetas com pernas de fora apresentando programas infantis. Xuxa na Globo, Angélica na Manchete, e a Eliana no SBT. O tempo foi passando, a Eliana envelhecendo. O programa teve outras apresentadoras. Na última versão, o programa era apresentado por duas crianças. O japonês Yudi, e a Priscila – que hoje é cantora neopentecostal. Nessa versão do programa, havia uma brincadeira que servia para manter o ibope. Era uma roleta vertical com vários nomes de brinquedos. As crianças ligavam para lá, entravam ao vivo. Dentre os brinquedos da roleta, havia o sonho da molecada. O Playstation. Videogame de última geração que pouca gente tinha grana para comprar. As crianças dessa época que hoje são pais; compram Playstation dizendo que é para o filho. Mentira.

Aí a criança entrava ao vivo, e Yudi perguntava: “Oi amiguinho! Qual é o seu nome? De onde você fala? Puxa, que cidade linda! E qual o prêmio que você quer?” ; “Claro que noventa e nove por cento das crianças esgoelavam “pleisteeeeeixo!”. Priscila rodava a roleta e Yudi dizia “então, amiguinho; pensa positivo e grita bem forte com a gente! Pleis-tei xo! Pleis-tei-xo! Pleis-tei-xo!”. A roleta parava em outro brinquedo e Yudi dizia com uma cara de triste, que era a definição da falsidade: “Ahhhhh, você ganhou uma boneca careca e pelada daquelas que ficam penduradas em sacos transparentes em biroscas cheias de coroas bêbados, que também é muito legal! Parabéééns! Até a próxima!”. Nessa hora, a produção tirava a criança participante do ar. Maior perigo de uma criança dessa largar um palavrão ao vivo! Eu disse tudo isso, meus caros; pra lhes ilustrar as minhas participações em amigo oculto. Eu sou a criança da roleta do Yudi.

O comandante começou. “Meu amigo oculto parará parará parará... é fulano!” ; “êêêêê!!!”. E a coisa foi acontecendo. Eu dei graças a Deus que ninguém estava abrindo o presente na frente de todo mundo. Sorriso de sarapatel, só se for sozinho no camarote. É mais elegante, né? Muita gente ganhando embrulho com nome de loja de roupa, vários Boticário, umas caixinhas pequenas com jeito de presente caro. Tudo ótimo. Aí um foi lá no meio e disse: “o meu amigo oculto é um cara muito legal. É novo no navio, assim como eu. Gosta de música, de violão...” falei, lá vem. E eu caí na besteira de pensar “peis-tei-xo! Pleis-tei-xo!”. Pra quê... aí fui lá no meio, recebi o presente, abraço, foto, aquilo tudo. E segui na brincadeira, apresentando meu amigo oculto e entregando seu cartão-presente do Boticário. Quando a brincadeira terminou e o pessoal se preparava para comer, meu presenteador passou por mim e disse com cara de “eu acho. Tomara que eu tenha acertado.” : “Você vai gostar, você é um cara que eu acho que você vai gostar. Eu não comprei roupa, que é uma coisa muito pessoal...” ; “Ih, meu irmão, claro que vou. Relaxa com isso!” Quando eu olhei para a sacola, era de uma perfumaria. Saco leve. Logo pensei “porra. Lá vem um perfume fedorento ou esquisito, olha. E roupa que é pessoal demais, né? Parabéns.”. Todo mundo comendo, eu já havia terminado, fui ao camarote abrir meu presente. Tranquei a porta, sentei na cama, tirei o embrulho do saco. Assim que eu rasguei o selo do pacote, o Yudi saiu de lá de dentro gritando “ahhhhhh! Pediu pleisteixo, né, seu babacaaaa!! Se fodeeeeu! Olha que merda que você ganhou, seu trouxa!! Um conjunto de três miniaturas de katanas, aquelas espadas de samurai, tudo made in Chinaaa! Agora você pode tentar amolar essas bostas aqui que não vão pegar fio nunca, e espetar tudo no furingo de quem te deu, seu otáááriooo!”

Sacanagem não. Quando eu olhei para aquele negócio, eu logo pensei como o cara foi escolher isso: “hmmmm, preciso comprar alguma coisa que sirva para qualquer pessoa. Uma coisa que qualquer um possa usar, que qualquer um vá gostar. Claro! Três minuaturas de katanas! Quem não precisa disso na vida?”

O melhor foi no outro dia. Eu entrava no meu camarote. Meu presenteador passou e disse “e aí, Arthurzão, beleza?” ; “Beleza, meu querido! Fica com Deus! Feliz natal!”. E veio o momento inevitável. Ele ficou parado debaixo da porta da escadaria, sorrindo, fazendo que sim com a cabeça. Estava esperando meu comentário sobre o presente. Sacudia a cabeça e certamente falava por detrás do seu sorriso mordido “então, vala gue gostou do bresente, pô. Vala aí, bor vavor?” . Eu, debaixo da porta do meu camarote, igualmente mordia um sorriso. Igualmente sacudia a cabeça. Por detrás de meus dentes eu dizia “ tá vudido que eu vou dizer gue gosdei daguela merda, zeu viado.”. Ele deu um sorriso de sarapatel. Foi ali que eu ganhei o meu presente.

Eu detestei tanto aquele negócio, que o presente acabou dando certo. Montei tudo bonitinho e deixei na estante do camarote, que eu não levo isso pra casa nem a pau. Toda vez que eu estou cansado ou nervoso, olho para aquilo e dou uma enorme gargalhada. Quando eu olho as minhas katanas, lembro do sorriso de sarapatel que ele deu; não do meu.

AGRADECIMENTOS

Enfim; foi um ótimo ano no âmbito profissional. Apesar das lesões, dos sustos e de toda ansiedade, estou vivo, com saúde, de pé. E tenho a vocês, que me lisonjeiam com sua atenção. Obrigado a todos. Quando escrevo, é como se cada um estivesse aqui comigo.

Faltam menos de dez minutos para a virada do ano aí no Rio. Se eu puder fazer um pedido para o próximo ano, peço simplesmente que continuem comigo. Tem sido maravilhoso. Fiquem com Deus e tenhamos um excelente 2019!